Introdução: A doença de Chagas (DC) é causa importante de cardiopatia, morte súbita e acidente vascular cerebral isquêmico (AVCI) na América Latina. O acometimento cerebral na DC ocorre em pacientes com cardiopatia secundário a AVCI ou isquemia silenciosa, mas há relatos de acometimento cerebral independente da cardiopatia. Os mecanismos responsáveis pelo acometimento cerebral independente da cardiopatia chagásica são desconhecidos.
Objetivos: Neste estudo visamos 1) determinar se a DC é um fator de risco para AVCI e óbito, independente da disfunção miocárdica; 2) determinar se a DC está associada a disfunção cognitiva, independente da disfunção miocárdica; e 3) investigar qual o mecanismo principal mediador de disfunção cognitiva na doença de Chagas em pacientes sem histórico de AVCI.
Métodos: Coorte prospectiva de pacientes portadores de insuficiência cardíaca (IC) (critérios de Framingham) sem histórico de AVC acompanhados em três ambulatórios de cardiologia em Salvador e um hospital em Belo Horizonte. Na visita basal, os pacientes foram submetidos a um questionário padronizado com coleta de dados demográficos, fatores de risco cerebrovasculares e coleta de sorologia (ELISA) para DC. Adicionalmente, foram submetidos a uma avaliação cognitiva composta pelos testes Mini Exame do Estado Mental, Bateria Breve de Rastreio Cognitivo, Figura Complexa de Rey, sequência de Luria, sendo esses testes transformados em escores-Z estratificados por domínios cognitivos vísuoespacial, função executiva, memória e um escore-Z global. Finalmente, os pacientes com IC foram submetidos a estudo de ressonância magnética do encéfalo com espectroscopia, sendo quantificados parâmetros de lesão vascular (contagem de infartos territoriais e lacunares, volume de lesão de substância branca) e de neurodegeneração [volume cerebral e cerebelar; e biomarcadores de espectroscopia no giro do cíngulo: N-acetil aspartato (NAA), colina (Cho), mioinositol (mI) e creatina (cr)]. Os pacientes foram acompanhados nos respectivos ambulatórios e por inquérito telefônico para avaliar os desfechos de AVC ou óbito. Todas as avaliações cognitivas, neuroimagem e avaliação de desfechos foram realizados por investigadores cegados quanto à etiologia da IC.
Resultados: Foram acompanhados 427 pacientes com IC por em média 45 +/- 33 meses (1601 pacientes-ano). Na avaliação basal, pacientes com DC apresentavam menor idade, menor proporção de fatores de risco cerebrovasculares e menor gravidade da cardiopatia em comparação com pacientes sem DC. A incidência de AVC foi de 2,1%/ano em chagásicos e 1,3%/ano em não chagásicos (todos de etiologia isquêmica). A taxa de óbito foi de 7,4%/ano em chagásicos e 6,5%/ano em não chagásicos. A DC foi associada a um maior risco de AVCI, com risco relativo (RR)=2,97, intervalo de confiança (IC) 95%=1,12 – 7,90, p=0,029, independente da idade, fatores de risco cerebrovasculares ou gravidade da cardiopatia. Não houve associação entre DC e a taxa de óbito. Na avaliação basal, indivíduos chagásicos apresentaram um pior desempenho cognitivo global em comparação a indivíduos não chagásicos [(escore Z mediano -0,78 (intervalo interquartil -1,48 a -0,12) vs -0,47 (intervalo interquartil -1,16 a 0,09), p<0,001], às custas dos domínios vísuoespacial e de função executiva, mas não no domínio de memória. Os parâmetros de lesão vascular cerebral não foram mediadores significativos da disfunção cognitiva, mas alguns parâmetros de neurodegeneração foram mediadores significativos. Para o efeito da doença de Chagas na cognição global, foram mediadores significativos (p<0,05): volume cerebral (13,5% do efeito), volume cerebelar (5,8% do efeito), NAA/cr (5,0% do efeito) e Cho/cr (6,7% do efeito).
Conclusões: Em uma coorte de pacientes com IC sem histórico de AVC, podemos concluir que: 1) a DC é um fator de risco para ocorrência de AVCI, mas não de óbito, independente da disfunção miocárdica; 2) a DC está associada à ocorrência de disfunção cognitiva independente da idade, grau de escolaridade ou nível socioeconômico, principalmente nos domínios de função vísuoespacial e função executiva; e 3) os achados de neuroimagem indicam um predomínio de mediadores neurodegenerativos em detrimento de mediadores de lesão vascular cerebral para justificar a disfunção cognitiva encontrada.
Palavras-chaves: 1.Doença de Chagas; 2.Acidente vascular cerebral; 3.Cardiomiopatia; 4. Demência; 5. Transtorno cognitivo leve.