Num dia quente de verão, quando os dois ponteiros do relógio apontavam para o céu, numa pequena localidade (Tanquinho), no interior do estado da Bahia, Deus me colocou no mundo.
Até a idade de 12 anos , vivi em Tanquinho.
Meu pai, José Adolpho Magalhães Azevedo, cirurgião dentista , e minha mãe Judith Soares de Souza e Azevedo, professora de curso primário, moldaram o meu ser dentro
dos valores que cultivavam.
Sou-lhes grata pela formação moral e religiosa que me deram.
Minha mãe sempre boa observadora e meu pai um dos homens que mais cultuava a simplicidade e também reconhecido por falar pouco; era mais de ouvir … chegou a ser criticado por não viver exibindo a riqueza material que possuía.
Meu pai amava sua profissão; abandonando-a somente em 1949 quando mudamos residência para Feira de Santana.
Eu fui a causa da mudança: havia sido aprovada no exame de admissão ao ginásio.
Assim, focarei meu relato entre os anos de 1936 e 1948.
Creio que a maioria dos adultos que me conheceram nessa época, não mais estão nesse mundo.
Dessa forma, não mais existo na memória dos que passaram e os atuais residentes em Tanquinho pouco me conheceram.
O esquecimento é futuro inevitável.
Mas, o que me motivou a escreve,
além de cumprir o prometido ao Professor Gilson, foi a tênue esperança que alguma criança portadora de qualquer tipo de deficiência, algum dia, venha a ler o que aqui escrevo.
1- Em fevereiro de 1940, faltando um mês para meu aniversário de 4 anos, na fazenda de meu avô paterno, como de costume, a família andava no fim da tarde até a ponte do rio Pojuca.
Na volta, subindo pequena ladeira, eu pedi a minha mãe que me carregasse. Ela achou graça em meu pedido, porque minha tradição era correr na frente. Eu insisti… estou cansada… me carrega.
Ao tocar em mim, ela percebeu que eu estava
febril.
Carregou-me.
Chegando em casa , ao colocar-me na cama, notou forte contratura em minhas costas , “somente o pescoço e o bumbum repousavam na cama”.
No dia seguinte, ela tentou me colocou de pé e constatou que minhas pernas estavam paralisadas.
De imediato, meu pai foi a Tanquinho buscar Dr. João de Oliveira Campos, médico da família. No percurso deixou a mim e minha mãe em casa de meu avô João Hipólito Magalhães Azevedo, em Berimbau , hoje Conceição do Jacuípe.
Dr. João rapidamente diagnosticou paralisia infantil aguda, “leva agora para Salvador”.
Gostei da ideia de conhecer Salvador.
No Ford 1940, importado, que meu pai acabara de receber (não havia fabricarão de carros nacionais), deitaram-me no assento de trás, meu pai dirigindo e minha mãe chorando.
Várias vezes estiquei o pescoço e perguntei se já via o mar.
Os sábios mestres Hosanah Oliveira e Benjamim Sales cuidaram de mim.
Retornamos a Salvador várias vezes para acompanhamento.
Um médico alemão, amigo
do Dr Benjamim , de passagem por Salvador, ensinou a minha mãe fazer exercícios em minhas pernas (não lembro de ter ouvido a palavra fisioterapia).
Durante dois anos, diariamente, minha mãe cumpria todo o protocolo dos exercícios.
Com mais paciência que eu, ela se dedicou a este trabalho, única esperança de recuperação.
Mais tarde, reconheci o significado desses exercícios.
Minha mãe, observava meus movimentos e sempre procura evitar posturas viciadas. Um verdadeiro amor de mãe.
E o tempo passou… dois anos depois da fase aguda consegui ficar de pé.
Antes disso, numa das vindas a Salvador, hospedados na Pensão Universal ( demolida anos mais tarde), em frente ao cine Guarani, com janelas vazadas e boa visão para a rua, meus pais deixaram-me um dia aos cuidados do Sr. Tibúrcio, velho conhecido de meus pais.
Ao lado da cama onde eu estava, havia uma cadeira comum. Puxei a cadeira, apoiei o tórax sobre o assento, e com o movimento preservado na perna direita, dei um empurrão e… para minha felicidade a cadeira deslizou no piso de madeira muito bem encerado e deslizante.
Sai do quarto, desfilei no corredor, fiz o retorno no refeitório, ia e voltava, várias vezes. Minha alegria era imensa…. Descobri que poderia me mover sem ser carregada.
A dona da pensão, quase enlouquece tentando me parar, e tomar a cadeira. Não lhe dei a menor atenção e continuei indo e vindo pouco ligando para as reclamações dela. Irritada, ela foi esperar meu pai na porta da pensão para relatar o estrago de arranhões que eu estava fazendo no piso da pensão.
Ao ver meu pai eu gritei: “ Meu pai, eu estou andando… veja!”
Ao retornarmos dessa viagem, meu pai conversou com um artesão em Tanquinho, Sr José Boneco, e juntos planejaram uma espécie de andador de madeira, em forma de “T” no qual eu apoiava o corpo numa pequena plataforma na parte de cima , e com a perna direita fazia o mesmo movimento que fiz na cadeira da pensão. Meu pai e Zé Boneco forraram as rodas de madeira com fina camada de borracha para aumentar a aderência ao chão e evitar deslizamentos e quedas.
E foi assim que eu dei os primeiros passos por volta dos seis anos.
Eu não quis ser alfabetizada em casa, meu sonho era ir para a escola com a garotada .
Um velocípede comprado por meu pai, poderia permitir-me andar na rua até a escola…mas, a perna esquerda nem no pedal ficava!
Deus sempre põe anjos em nossa vida.
Benedito Ribeiro, vizinho, da minha idade, dedicou-se a empurrar meu velocípede na ida e volta para a escola.
Ida no início da manhã em declive; retorno ao meio-dia subindo ladeira em chão de barro. Calor e canseira … mas, a felicidade dele e minha superavam tudo.
Benedito, que ainda hoje continuo a chama-lo de “Dito”
ainda vive, nossa amizade continua com conversas frequentes, e ele continua a chamar-me de “ Ane.”
A realização de ir e voltar para a escola todos os dias, devo ao meu amigo
Dito.
Aprender a ler foi outro deslumbramento.
Meu pai assinava um jornal,
a revista Noite Ilustrada
e a Seleções Reader’digest.
Eu sentava no chão do consultório dele e lia tudo.
Acompanhei a segunda guerra mundial, principalmente, vendo as fotos publicadas na Noite Ilustrada. Eu não tinha a menor ideia dos continentes nem do mundo. Só sabia que a guerra era longe de Tanquinho.
2 - Os desenhos.
Por dom de Deus, comecei a desenhar antes de escrever. Desenhei meu pai, Nossa Senhora e outras pessoas e Santos que não recordo. Cidade pequena, todos queriam ver meus desenhos. Orgulhosamente, Dona Olindina Silva , que morava em nossa casa e era uma espécie de segunda mãe para nós, mostrava meus desenhos a todos.
Certo dia, o padre local, padre Carlos de Lima Santiago mandou me chamar dizendo que o altar de Coração de Jesus iria ser reformado e o
arquiteto em Salvador pedira fotos do mesmo.
Para fotos em ambiente interior teria que chamar fotógrafo profissional em Feira de Santana. O padre resolveu de forma mais econômica: eu faria o desenho completo do altar.
Adorei a ideia.
Pedi que no período das tardes me deixassem trancada a sós na Igreja, uma vez providenciados mesa, cadeira e material para o desenho.
Foram muitas tardes de desenho envolta em absoluto silêncio num ambiente sagrado.
Caprichei nos mínimos detalhes. Para minha felicidade o arquiteto aprovou o desenho e a reforma foi planejada.
Foram mais melhorias que mesmo uma reforma. O altar, ainda hoje, permanece com o projeto arquitetônico inicial.
3- Crônicas da Ave Maria.
Havia um serviço de alto-falantes em Tanquinho. Não lembro bem quem era responsável pelo serviço, se a prefeitura, a paróquia ou particular. Lembro -me que, todos os dias, às seis horas da tarde, tocava a Ave Maria.
Achei que algo deveria ser dito nessa hora tão bela e resolvi escrever crônicas da Ave Maria .
Minha mãe leu as primeiras e disse-me que para serem lidas no serviço de auto falantes teria que ter a aprovação do Padre Carlos.
Para minha alegria o Padre aprovou todas.
Muito feliz, eu mesma fazia a leitura para o público.
Aos poucos, as pessoas, principalmente, as senhoras mais idosas, passaram a me parabenizar .
Certo dia, uma delas me disse que chorou ao me ouvir.
Reconheci que as crônicas por serem sempre preocupadas com as pessoas doentes e sofredoras, tinham, sim, um certo sentimento de tristeza.
4- Subir ao monte de Tanquinho.
Este relato publiquei no Jornal
A Tarde quando “Nego Pipa Morreu”. Porei como anexo.
5-Finalmente chegou o ano de 1948. Fui aprovada no exame de admissão em Feira de Santana.
Em março de 1949, iniciei os primeiros passos de uma longa caminhada para realizar o sonho de ser médica.
Graduei-me em medicina em 1961.
A partir desta data os acontecimentos estão registrados, inicialmente nas instituições pertinentes e mais recentemente na internet.
Concluo, na esperança que o relato de minha infância (que já deve ter sido esquecida), sobreviva por alguns instantes no coração de quem dispuser de tempo para esta leitura.
Só Deus é Eterno.