Excelentíssimo Prof. Doutor Antonio Carlos Vieira Lopes,
Digníssimo Presidente da Academia de Medicina da Bahia
Em sua pessoa cumprimento: • Os componentes da Mesa Diretora, • Os Membros da Diretoria, • Autoridades presentes e representadas,
Membros da minha Comissão de Honra:
1-Profa. Dra. Lícia Moreira, em nome da qual saúdo todas as demais confreiras e todas as mulheres que não desistiram de ser cientistas e de fazer ciência, com propósito;
2-Prof. Dr. Sebastião Loureiro, meu mestre querido, em nome do qual saúdo a direção e demais colegas e funcionários do Instituto de Saúde Coletiva, responsáveis em grande medida pelo que fiz e continuo sendo;
3-Prof. Dr. Ronaldo Jacobina, colega do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Bahia, onde primeiro busquei acolhida nos meus estudos em Saúde Comunitária e Saúde Mental, em nome do qual saúdo todos os meus antigos e atuais colegas.
Companheiros de trabalho, assistentes de pesquisa, gerentes de projetos, alunos e ex-alunos, parceiros e parceiras de toda a vida;
Membros da minha extensa família, e dos meus amores, os maiores, Mariana e Augusto meus filhos, João Vitor meu neto querido;
E Larissa Monteiro, professora da Faculdade de Medicina, sobrinha que vem seguindo os meus passos.
Minhas senhoras e meus senhores,
É com muita honra, respeito e humildade, que assumo a posição de Membro Titular da Cadeira no. 4 desta Academia de Medicina da Bahia, cujo Patrono é o Dr. Almir de Sá Cardoso de Oliveira. O segundo ocupante, Membro Emérito, é o Prof. Dr. Antônio Jesuíno dos Santos Netto, e o terceiro, também Membro Emérito o Prof. Dr. Ernane Nelson Gusmão.
Como acadêmica, hoje assumo a responsabilidade de guardiã da memória desses meus antecessores, e de todos os demais que, com honra, passaram e continuam abrilhantando esta Casa. Minha contribuição será, sobretudo, lutar pela permanência do respeito ao legado científico, de valores e princípios que sustentam a ciência e as suas consequências,
antes,
hoje
e sempre.
Sobre o Patrono, Almir de Sá Cardoso de Oliveira
Segundo o Dr. Rodolfo Teixeira1, a responsabilidade do ato de partejar era, à época, finzinho do século XIX, quase totalmente das parteiras. Mas se havia complicações, o cuidado médico ao parto era bastante limitado. Na cidade do Salvador, Bahia, dispunha-se apenas de uma pequena enfermaria, um espaço insuficiente, infraestrutura precária e o nível de higiene inaceitável. Muitas eram mulheres pobres. O Prof. Climério de Oliveira, da Faculdade de Medicina, decidiu criar uma maternidade-escola que se tornou a razão de sua vida. O confrade Dr. Almir, nascido em 1887, se graduou aos 22 anos de idade, em Medicina. Desde então seguiu uma carreira acadêmica marcada por liderança e proatividade. E foi amado pelos alunos, principalmente pela emoção que colocava nas palavras.
O Prof. Almir Oliveira era amplamente reconhecido como brilhante, inteligente, de raciocínio rápido e de excelente habilidade oratória. Em 1935, recebeu recursos para realizar obras na Maternidade Climério de Oliveira, e decidiu pela construção de um pensionato, na verdade, uma enfermaria para parturientes pobres. Em contraste, ao final da vida do confrade Prof. Almir, suas condições socioeconômicas podem nos trazer uma reflexão, sobre a nossa combalida rede de proteção social dos trabalhadores. Palavras do Prof. Alício Peltier de Queiroz, em seu discurso de saudação ao Paraninfo da turma: “é preciso que saibais, banqueiros, grandes industriais, magnatas do comércio, latifundiários, que grandes mestres desta Casa terminaram os seus grandes dias na pobreza extrema e irremediável” e cita Almir de Oliveira (Queiroz, 1959, p. 9. Apud Jacobina, 2019)2. Eram tempos duros. Mesmo para professores de um dos mais veneráveis centros de formação e produção científica, a Faculdade de Medicina da Bahia. Esse final melancólico, contrasta com os cargos importantes que exerceu como o de secretário de saúde do estado da Bahia.
1 Teixeira R. Memória Histórica da Faculdade de Medicina do Terreiro de Jesus na Bahia (1943-1995). Salvador: EDUFBA, 2001, 288p.
2 Queiroz AP. Oração de Paraninfo proferida na solenidade da colação de grau dos Médicos pela Faculdade de Medicina. Salvador: Faculdade de Medicina da Universidade da Bahia, dezembro de 1959. Apud Jacobina R. Almir de Sá Cardoso de Oliveira (23/10/1887 – 02/01/1949). Anais da Academia de Medicina da Bahia.
Aposentou-se em dezembro de 1948. E, surpreendentemente, apenas um mês depois, em janeiro de 1949 se tornou um encantado. A morte logo após a aposentadoria, no âmbito da Epidemiologia, demarca o chamado Efeito do Trabalhador Saudável. O trabalhador vive enquanto se encontra no trabalho ativo. Ao se afastar, finda a vida. No pós-guerra dos anos 1940, a mortalidade logo após a aposentadoria atingia até mais do dobro dos que permaneciam. Isso espantava a todos. E enganava pesquisadores que, ao verificar se havia associação entre exposições ocupacionais e enfermidades, encontravam, ao contrário, associações inversas. Isso porque, ao afastarem do trabalho pessoas expostas com início de sintomas, manejo comum nas práticas de vigilância ocupacional, produzia-se um viés, atípico e incomum. A percepção dos primeiros sintomas levava à interrupção da exposição suspeita; e assim ficava impedida a observação de ambas, exposição e doença, no mesmo sujeito. Esse viés, portanto, não pode ser tratado apenas como um problema metodológico, um ajuste a ser feito. Mas como expressão, de fato, de uma cruel injustiça social. Os riscos não são evitados e, quando as consequências aparecem, não há remediação possível e são afastados. E esse é, também, um exemplo de que significados não estão nas aparências. Viver saudável para produzir e ao parar de produzir, prontamente morrer, dói. Essa morte foi também um encantamento. Ronaldo Jacobina me garantiu que sim. Mas não consigo vê-la apenas com a poesia e a luminosidade da palavra “encantamento”.
Por fim, eu me cativei com as coincidências de interesses que se entrelaçavam entre os meus antecessores dessa Cadeira 4. Orientei uma dissertação sobre condições sociais (trabalho) e mortalidade materna. Tema que motivava o confrade Dr. Almir de Sá Cardoso de Oliveira a minorar efeitos da pobreza. Quase 100 anos depois, mesmo antes da pandemia, o Brasil era o país do BRICS com maior razão de mortalidade materna. E suas metas de redução não vêm sendo atingidas. No estudo com AnaIsabela Feitosa3, disparidades constrangedoras apareceram: maiores riscos de morte materna em agropecuárias, empregadas domésticas, manicures e auxiliares de enfermagem em comparação com a do país. Ocupações que têm em comum extremos esforços físicos e contato com agentes químicos.
O cuidado ao parto vai muito mais além do parto.
Continuamos com muito a fazer.
O que diria o Confrade Prof. Almir, Patrono dessa Cadeira no.4?
O segundo ocupante, Membro Emérito Dr. Antônio Jesuíno Netto
O Dr. Jesuíno, como era chamado, nasceu em 18 de setembro de 1920 em Salvador. Estudou na Faculdade de Medicina e se graduou em 1944, aos 24 anos. Ainda estudante, depoimentos de vários contemporâneos demonstram o seu intenso ativismo
3 Feitosa-Assis AI & Santana VS. Ocupação e mortalidade materna no Brasil. Revista de Saúde Pública, 2020:54, 64. https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2020054001736 social e político, iniciado ao final da sua formação médica4. Foi quando também assumiu a liderança de vários movimentos vinculados ao ativismo humanista da igreja católica, de lutas sindicais e associativistas, como as de defesa do trabalho médico.
Uma característica marcante era a sua capacidade de se dedicar a várias coisas simultaneamente. Além da Cirurgia, o seu principal interesse, também estudava Ginecologia, Psicopatologia Infantil, Hematologia Clínica, Radiologia Clínica, Gastroenterologia, Angiografia, Administração Hospitalar, Geriatria, Endocrinologia, dentre outras. E isso contrastava radicalmente, com o seu jeito de estar-no-mundo. Nos nossos contatos, raramente demonstrava ansiedade, nervosismo, inquietação, mesmo diante dos desafios do trabalho coletivo, com a procrastinação de alguns, ou a tensão que precedia apresentações para comissões graduadas. Mas lá estava o Prof. Jesuíno com sua habitual nonchalance, um sorriso meio irônico, meio maroto, de compreensão da inquietude típica da juventude dos seus companheiros de trabalho. Iniciou sua carreira acadêmica na Escola Baiana de Medicina e Saúde Pública, como Prof. Assistente de Propedêutica Cirúrgica até chegar à Titular. Foram 66 anos de exercício da Medicina e 42 anos como professor, até a sua aposentadoria. Mas, em seguida, continuou ativo, ensinando na Faculdade da 3ª idade por 22 anos5.
Tive a sorte de conviver com ele entre os anos de 1985 e 1986. Era a gestão de Waldir Pires como Ministro da Previdência, e Sérgio Gaudenzi era o seu chefe de gabinete. Foi uma época marcada pela efervescência de ideias, propostas visionárias, nas quais as palavras direito, equidade, desigualdades sociais e princípios universalistas e includentes não saiam das discussões. Ainda era uma utopia, mas estavam cada vez mais próximos e reais, a Constituição Cidadã de 1988 e o nosso amado SUS. O Ministério da Previdência solicitou ao Instituto de Serviços Públicos, ISP, uma Proposta de Regionalização e Gestão Participativa. A coordenação era de Dra. Margarida Batista e a equipe formada por Antônio Soledade, Sérgio Hage Fialho, Márcia Rangel, eu e Antônio Jesuíno dos Santos Netto. Que nos trouxe seu conhecimento sobre a previdência social, sua experiência em lidar com a interdisciplinariedade, o necessário compromisso com o fortalecimento das instituições públicas e a certeza de que essas podem garantir a oferta de serviços básicos, de modo eficiente e com qualidade. Jesuíno fez a sua parte, representando o INAMPS nesse grupo interinstitucional coeso, harmônico e solidário. Sua gentileza, civilidade, profissionalismo, e a sua doçura, quase candura, chegavam a causar perplexidade. Infelizmente pouco ficou preservado da sua contribuição ao ensino e a prática da Cirurgia. Seus melhores amigos nem sabiam dessa atividade. Prometi a Paulo André Jesuíno, seu filho, que farei o possível para recuperar uma cópia do relatório encaminhado ao MP para o repositório desta Academia. E já conto com o compromisso de Márcia Rangel nesse esforço. Um prêmio com o seu nome foi criado pelo Instituto Bahiano de História da Medicina, que, em 2012, foi recebido pelo confrade Ronaldo Jacobina.
4 Pondé de Sena C. Dr. Antônio Jesuíno Netto, humanitário e bom. Academia de Letras da Bahia, 23/9/2011.
5 Santana H. Antônio Jesuíno Netto – uma vida dedicada à arte do cuidar 1920-2011. Vida &
Ética -Revista do Cremeb ano 2 no. 7:14-16, 2011
Seu encantamento ocorreu em 2011, em plena sala de aula. E causou surpresa. Foi como ele queria. Mas a gente esperava que ele nos presenteasse com sua eternidade. De corpo e alma.
2º Membro Emérito – Ernane Nelson Antunes Gusmão
O Confrade Prof. Ernane não é baiano. Mas, nós confreiras e confrades baianos o perdoamos porque ele nasceu logo ali ao lado, em Minas Gerais, cidade de Pedra Azul, em 1941. Com sete anos, seus pais, migraram para Vitória da Conquista. Todavia, preocupados em garantir a melhor educação para os filhos, tomaram uma decisão corajosa: enviá-los para colégios internos. Esses foram se sucedendo, seguindo a rede de relacionamentos que mantinham no Rotary Club, até chegar em Salvador, onde cursou o ensino médio no Colégio Maristas. Ali, adorava o aprendizado das técnicas de oratória e argumentação, a indução ao gosto pela literatura, os clubes e grupos de leitura. E continuava a experiência de viver longe da família, adolescente, agora em pensionatos. Essa saída precoce da vivência em família e a experiência de um cotidiano longe dos pais parecem tê-lo marcado para sempre. Interessante foi conhecer a experiência de cuidado compartilhado dos “pais correspondentes”, amigos dos seus pais que o visitavam e se comunicavam diretamente com eles. Uma experiência coletiva, solidária, de afeto e cuidado, que poderia ser melhor estudada e compreendida nos dias de hoje, quando a fraternidade e colaboração fazem tanta falta.
Graduado em 1964, se interessou por Urologia. Isso o levou ao Rio de Janeiro, onde conheceu o Prof. Dr. Jayme Landmann (pai da nossa amiga e importante epidemiologista do país, Célia Landmann, FIOCRUZ). Jayme Landmann revolucionou os modos de cuidado especializado em Urologia, no Hospital Pedro Ernesto, na Universidade do estado da Guanabara, hoje Universidade Estadual do Rio de Janeiro, UERJ, uma das melhores do país. E, ali e com ele, teve acesso à uma formação de alta qualificação. Ernane não parece desperdiçar aquilo que, aparentemente, a sorte lhe joga ao destino. Evidência disso, é a sua proatividade, empreendedorismo, e visão à frente do seu tempo. Essas características marcam a sua atividade intelectual e artística e o pioneirismo em tudo que faz.
Ao retornar à Bahia iniciou a carreira docente na Faculdade de Medicina, em 1966, e ali teve uma trajetória brilhante. Liderou a institucionalização da Urologia, e sua separação da Nefrologia, o uso de tecnologias médicas e inovação tecnológica, além de apoiar e induzir a realização de várias pesquisas consideradas “da fronteira do conhecimento”. Exemplo dessa atuação, foi a realização da 1ª hemodiálise na região Norte e Nordeste em 1968; a instalação do primeiro serviço especializado nessa técnica; a incorporação da biópsia renal como recurso diagnóstico e da arteriografia de Seldinger; dentre muitas outras, fundamentais no campo da prática e formação médicas6. Hoje, aposentado da UFBA, permanece ativo, inquieto, mostrando que é uma mente que cria. Dedica-se à clínica no Hospital Português, alia a sua paixão por cavalos à prática de equoterapia, e tem revelado seu lado artístico, quase profissional. É escritor, poeta, músico, astrônomo, criador de cavalos e historiador. Já deixou sua permanência, imortalidade, na mente e na alma dos seus muitos admiradores e “bem-quereres”.
Por fim, espero poder tratar desse tema, misterioso e sublime - a imortalidade – sonho, desejo, fantasia, mas que fundamenta o “para-quê” desta Casa. Temos uma missão. Levar a todos o legado dos nossos antepassados, dos que já nos deixaram, mas suas marcas na passagem entre nós, não.
E aqui convido-os à reflexão sobre o que permanece. Mas não apenas do que foi criado e concluído. Que já é passado.
A ciência se desenvolve com rupturas e se atualiza no seu vir-a-ser. E o seu futuro é construído pelo nosso trabalho que envolve também a desconstrução. Na ciência médica é também assim; e na sua “arte”, posto que é também técnica, inovação e criação. Mas a sua imortalidade reside na imanência do amor ao outro; um pressuposto do exercício do amar, do ato de amar que é o cuidar, proteger, da solidariedade e compaixão, marcas do nosso compromisso ímpar com a ética e a justiça.
Que nos deixa quase imortais.
Sempre presentes, e para sempre eternos, no quase divino.