SAUDAÇÃO
• Excelentíssimo Senhor Presidente da Academia de Medicina da Bahia, Doutor Almério de Souza Machado
• Excelentíssimo Senhor Doutor Geddel Quadros Vieira Lima, Ministro Chefe da Secretaria de Governo do Brasil
• Excelentíssimo Senhor Doutor Fábio Villas Boas Pinto, Secretário de Estado da Saúde do Estado da Bahia
• Excelentíssimo Senhor Doutor Luiz Fernando Fernandes Adan, Diretor da Faculdade de Medicina da Bahia, UFBA
• Excelentíssimo Senhor Doutor Robson Freitas de Moura, Presidente da Associação Bahiana de Medicina
• Excelentíssimo Senhor Doutor Roberto Figueira Santos, Membro Titular da Academia de Medicina da Bahia
• Excelentíssimo Senhor Doutor Thomaz Rodrigues Porto da Cruz, Membro Titular da Academia de Medicina da Bahia
• Excelentíssimas Senhoras Acadêmicas e Senhores Acadêmicos
• Excelentíssimas Senhoras e Senhores Convidados
• Meus queridos e ilustres amigos
• Meus irmãos, cunhada e cunhados
• Minha querida mãe Solange Maria Araújo
• Meus amados filhos Flávia e Cesar
• Minha amada esposa Adriana
Agora, aqui entrado, manifesto do fundo do mais fundo do meu coração, comovido, o agradecimento aos senhores Acadêmicos pela generosidade da minha escolha de fazer parte dessa egrégia Academia, que congrega em seu cenáculo médicos que sempre dignificaram a profissão, com reconhecida competência, de conduta ética idônea, e pelo amor à medicina e ao próximo.
Sou particularmente grato aos mestres e amigos, agora confrades, Almério Machado, Roberto Badaró e Antônio Carlos Vieira Lopes, pelo apoio incondicional e estímulo para submeter o meu nome ao processo de admissão para esta agremiação científica, que culminou com a minha ascensão a membro titular, conquista que muito me emociona e felicita, possibilitando-me conviver ao lado de destacados mestres da medicina baiana cujos serviços prestados às pessoas e à nação consagraram-lhes a merecida nobreza acadêmica.
Certamente este é um dos momentos mais importantes de toda a minha vida profissional. Ser aceito nesta tradicional Academia e tomar posse perante todos os senhores é motivo de muita honra, ao mesmo tempo em que me preocupa pela magnitude que esta atividade representa. Poder participar dos trabalhos da Academia de Medicina da Bahia e opinar, em um fórum de tão elevado nível, sobre os assuntos relevantes relacionados à medicina e a vida brasileira, se por um lado muito me envaidece, por outro me envolve de um misto de sentimentos de responsabilidade e de necessidade de participação, para buscarmos novos e mais promissores caminhos para o nosso país.
Abençoando ao destino amável por este prêmio, ao me tornar o primeiro ocupante da cadeira 45, cujo patrono é o Prof. Cesar Augusto de Araújo, meu amantíssimo avô, valor humano de excepcional quilate, paradigma de médico, professor e humanista, vivo o privilégio que me foi concedido de convergência das nossas vidas profissionais, já que não tive a oportunidade de privar da excelência do seu ensino de escol no âmbito da medicina. Entretanto, a presença do meu avô tem sido intensa e constante na minha existência, quer seja pela exaltação dos valores da convivência familiar que sempre nos transmitiu, quer seja pelo exemplo profissional obtido através de depoimentos emocionados dos seus pacientes e de relatos eloquentes dos antigos professores, alunos e discípulos da vida universitária, bem como pelas obras sociais valorosas que nos deixou como herança, algumas delas ainda prestando relevantes contribuições no contexto da assistência à saúde pública, como o Hospital Especializado Octávio Mangabeira, criado por ele como Hospital Sanatório Santa Terezinha.
Desde muito cedo senti o peso da responsabilidade do nome que herdara e sem tréguas sempre tive que me superar para não decepcionar os meus professores da Faculdade de Medicina da Bahia e os meus familiares.
Cesar Augusto de Araújo nasceu a 17 de maio de 1898, nesta cidade do Salvador, no bairro de Santo Antônio Além do Carmo, sendo filho de Antônia Santiago de Araújo e José de Araújo, modesto funcionário público.
Fez seus estudos primários e secundários no Colégio Carneiro Ribeiro, à Ladeira da Soledade, sob a direção do grande educador Ernesto Carneiro Ribeiro, de quem recebeu expressivo estímulo, permitindo-lhe a frequência gratuita no renomado estabelecimento de ensino. Por esta razão tinha pelo Colégio e pelos seus fundadores verdadeira veneração.
Aluno aplicado, estudioso, responsável, concluído o curso secundário, matricula-se, em 1915, na Faculdade de Medicina da Bahia, onde continua a mesma trajetória, tendo sido, em sua turma o aluno que obteve o maior número de distinções nas matérias do curso. Ainda estudante, é admitido como interno da Primeira Cadeira de Clínica Médica, de que era catedrático o Prof. Clementino Fraga. Data daí o início de sua aproximação e convívio com o grande mestre da Clínica Médica, dos maiores do seu tempo no país, mestre que influiria, decisivamente, em sua vida profissional, a quem Cesar se referiu com emoção no seu discurso de agradecimento por ocasião da sua aposentadoria: “Dos títulos de minha pobre vida profissional, já confessei: este o que mais me envaidece: ter respirado de perto esse predestinado, naquele concerto de mil talentos e formosuras que lhe compunham, como compõem, a personalidade modelar. Um dos Santos Leigos da minha devoção intelectual, o maior e o melhor dos meus mestres! A ele nem sei mesmo o que devo, porque quase tudo do quase nada que tenho sido e sou na profissão”.
Em 1920, diploma-se em medicina, aos 22 anos de idade, sendo orador da turma na solenidade, demonstrando desde daí as suas grandes qualidades literárias. Defende tese de doutoramento intitulada – “Da correlação hepato-renal (rim hepático e fígado renal)” e, por justa razão foi laureado com o Prêmio Alfredo de Brito, concedido pela Comissão Examinadora, constituída por luminares, como os professores Antônio de Freitas Borja, Clementino Fraga e Martagão Gesteira, um parecer que dignifica qualquer um que se inicia em sua profissão. A comissão assim se manifestou: ”todo o trabalho é escrito em linguagem clara e elegante, revelando acurado estudo do assunto e erudição farta”... e mais adiante “Foi de todos os alunos de sua turma aquele que obteve o maior número de distinções, conseguindo-as em todas as matérias, exceção feita apenas das cadeiras de Higiene e Medicina Legal, nas quais foi aprovado plenamente com grau nove”.
Era o prelúdio de uma brilhante carreira profissional.
Daí, uma sucessão de atividades médicas no seu currículo acadêmico, como em 1921, assistente da Primeira Clínica Médica que tinha como titular, o professor Armando Sampaio Tavares, de quem ele disse no seu belo discurso de posse de professor, refazendo uma retrospectiva de sua vida... ”Armando Sampaio Tavares, aquele homem sábio e santo, de quem falo com unção de prece e a que caberiam os versos de Musset: C’etait un noble coeur, naif comme l’enfance, bon comme l’esperance. Ah, meu caro e doce Armando, se eu pudesse dizer em palavras o que aprendi no evangelho de tua companhia! Todos os dias e em toda a parte! Naquilo tudo que foste tão grande e tão belo! Mas meus olhos se nevoentam, molhados de lágrimas, à evocação deste afeto de irmão que a tua ausência não apagou e, apenas posso dizer-te que te sinto hoje aqui como ti senti sempre, em todos os bons e maus momentos da vida, sensível, emotivo, insatisfeito, tu que, para mim, foste como és, e serás edificante, um dos mais nobres e imaculados modelos humanos que jamais conheci.
Em 1925, precisamente a 05 de dezembro, Cesar casava-se com Alda da Silva Araújo, a sempre afável e devotada companheira Aldinha, a quem uniu a sorte e a sua vida e que lhe foi, sempre, alento e ânimo, estímulo e encantamento, consorte de todas as horas. Desta união nasceram três filhas, Célia, Regina e Solange.
Em 1927, defendeu tese para Livre-Docência de Clínica Médica com o trabalho: “Sôbre a indicação e os resultados do pneumotorax artificial na tuberculose pulmonar, para, em 1930, reger interinamente a Cadeira de Clínica Médica, substituindo o Prof. Armando Sampaio Tavares.
Na Bahia do começo do século passado, como no resto do mundo, a tuberculose pulmonar se inscrevia entre os mais graves problemas de saúde individual e coletiva. Sua história registrava lances dramáticos, capazes de desencadear iniciativas de maior alcance. A literatura mundial enriqueceu-se de obras-primas inspiradas nos profundos efeitos da doença sobre o espírito e o corpo dos seres humanos. O destino dos povos foi, muitas vezes, alterado pelas consequências da moléstia no comportamento de personalidades de enorme importância histórica.
Na cidade do Salvador a mortalidade por tuberculose era altíssima. O médico Fabio de Carvalho Nunes, a partir dos dados fornecidos pelo serviço de bioestatística do estado da Bahia, chegou a conclusão de que nessa cidade ela matava mais do que todas as outras doenças transmissíveis juntas.
De 1900 a 1948 cerca de 52.701 habitantes morreram de tuberculose.
Esse mesmo autor mostra que o coeficiente de mortalidade em Salvador era o mais alto de todas as capitais brasileiras.
A população de Salvador em 1940 era de 290.443 habitantes. Salvador foi uma cidade que cresceu de forma modesta entre o período posterior à Proclamação da República e as primeiras quatro décadas do século passado, variando em torno de 2% ao ano. Esse pequeno crescimento ocorreu em função de ter sido ele exclusivamente vegetativo, pois a migração era praticamente nula. Dez anos mais tarde, a população da cidade tinha passado a 389.422 habitantes. Ou seja, houve um crescimento de aproximadamente 33%, principalmente em função da migração rural. Esse crescimento só fez agravar as condições de vida da população que continuava enfrentando sérios problemas de habitação e de subsistência.
A tuberculose portanto já era considerada uma doença social, agravada nos grandes centros urbanos e que atacava principalmente a população pobre em função das suas precárias condições de vida e de trabalho.
No âmbito do exercício profissional, erigira-se o estudo da tuberculose em especialidade, a atrair as atenções de médicos dos mais prestigiosos, como era o caso do professor Clementino Fraga, da nossa Faculdade de Medicina. Clementino não se limitara a dedicar-se, ele próprio, com o maior afinco, ao conhecimento e ao combate à tuberculose. Mais que isto, procurara orientar na direção da tisiologia um dos mais capazes dentre os seus discípulos, o jovem Cesar Augusto de Araújo.
Ao decidir-se pelo estudo e pela luta contra a tuberculose, Cesar de Araújo, de modo pioneiro, enfrentaria um dos maiores problemas médicos-sociais de todos os tempos. A tuberculose não reconhecia limites à sua disseminação, e não respeitava classe ou estamento social. Mas, como sempre acontece com os infortúnios, dos pobres cobrava tributo cada vez maior.
Trazia Cesar sólida formação em Medicina Interna, destacando-se a atitude do generalista, como um dos componentes essenciais da notável proficiência como médico. Essas qualificações aliadas a um profundo conhecimento da Patologia Torácica, o distinguiu dos tisiologistas daquela época. Na realidade, embora tenha iniciado a sua formação em Clínica Médica, precocemente revelou o seu pendor pela Tisiologia.
Mestre Cesar, como era conhecido por toda a classe médica, a partir de 1930, sem jamais deixar o vínculo com a Faculdade de Medicina da Bahia, continuou ministrando suas aulas, tanto no curso de graduação, como no curso de especialização em Tisiologia para médicos e estudantes das últimas séries. De 1937 a 1939 proferiu aulas no curso de aperfeiçoamento de Tuberculose, sob a direção do Prof. Clementino Fraga, na Faculdade de Medicina do Brasil, no Rio de Janeiro. Ainda em 1937, foi convidado pelo Prof. Fanso Gandolfo para ministrar aulas na cadeira de Patologia e Clínica de Enfermidades Respiratórias, como também na Cátedra de Clínica Médica, a convite do Prof. Nicolas Romano, ambos da Faculdade de Ciências Médicas de Buenos Aires, na Argentina.
Atuou, ainda, como professor contratado de Terapêutica Dentária, de 1923 a 1925, na então Escola anexa de Odontologia da Faculdade de Medicina da Bahia e de professor de Higiene Geral e de Fisiologia Geral da Escola de Enfermagem da Bahia, no periodo compreendido entre 1938 e 1947.
De 1944 a 1947 proferiu aulas na cadeira de Microbiologia, foi representante de Docentes Livres da Congregação da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, professor catedrático de Biologia Geral da Faculdade de Filosofia.
Pelo seu destaque na luta contra a tuberculose e a sua reconhecida competência, teve que se afastar da Faculdade de Medicina para exercer cargos de confiança no governo do Estado, como Diretor Geral do Departamento de Saúde (1938-1942), Diretor do Sanatório Santa Terezinha (1942-1946) e Diretor da Divisão de Tuberculose (1946-1947), criando assim um hiato em sua carreira no magistério.
Em 31 de julho de 1936, foi entregue ao Prof. Cesar de Araújo a Inspetoria de Profilaxia da Tuberculose para chefiá-la. Trabalhando no Dispensário Ramiro de Azevedo, que encontrou insuficiente e fisicamente degradado, convocou senhoras da sociedade, que reuniu na Fundação Anti-tuberculose Santa Terezinha e instou com governantes a recuperação do Dispensário.
Na reinauguração em 29 de maio de 1937, o Prof. Cesar de Araújo inicia o seu discurso em solenidade presidida pelo Interventor do Estado da Bahia, Juracy Magalhães: “É com emoção - mas emoção viva e profundamente sentida - que falo, neste momento, em que, revivescendo das quase ruínas em que havia parado, num admirável “SURREXIT”, se reinaugura o Dispensário Ramiro de Azevedo, o velho reduto de onde clarinaram na Bahia, os primeiros gritos de rebate contra a maior das nossas calamidades sociais, o local onde, na clausura dos consultórios entre a dor e a indigência, desde a minha manhã profissional, tenho passado boa parte da vida, encontrando em cada canto uma reminiscência, que a memória espelha em seus relevos” e termina, assim se expressando... “Em nome dos que sofrem e dos que choram a tragédia da Peste Branca, “em nome dos que da vida, só conhecem as limitações miseráveis do destino, tanta vez injusto e cruel”... “em nome dos que, na exaustão das forças para vencer, perderam as prerrogativas dos mimos confortativos... ... “em nome dos que passam em andrajos dolorosos da maior penúria” ..., “em nome dos que roçam no lado das alfurjas”..., ... “em nome dos que se amontoam no muladar das obscuridades purulentas” ... “em nome desses todos, meu Deus, que não têm um pouco de ar nos seus cochicolos de taipa, nas suas mansardas frágeis como ninhos, dependurados nas galharias dos montes, que os ventos arrebentam, as chuvas destroem, as erosões desmoronam”... ...”em nome dessas vítimas das desigualdades fatais, das cegas distribuições da sorte, que os teoristas da dor alheia capitulam de lógicas condições de vida”..., “em nome desses todos que vivem no casario infecto urbano, suburbano e infra urbano, sem graça, sem alegria, sem sustento, em nome do tuberculoso pobre, em nome do vigor e da saúde da sua gente, dizimada pelas vidas que o flagelo todos os dias, todos os meses, todos os anos, impiedosamente vai ceifando, em nome, por termo, dos mais sagrados principios de solidariedade humana”.
A Fundação Anti-tuberculose Santa Terezinha havia sido instalada em 30 de abril de 1936, com a finalidade precípua de prestar assistência material aos doentes e teve como Presidente da solenidade a Sra. Lavínia Magalhães, esposa do Interventor Federal na Bahia, o Cel. Juracy Magalhães.
Prof. Cesar de Araújo, designado Diretor Técnico Vitalício da recém criada Fundação, contando com o apoio integral do Governo do Estado, pronuncia discurso: “Infelizes Irmãos Nossos!”... em que retrata a situação calamitosa da Tuberculose, informando que a Bahia ...”cidade com legenda de hospitaleira, mas, quase sem hospitais para os pobres, não dispõe nem de 50 leitos (!) no benemérito Hospital Santa Isabel”. E, citando a parábola do bom Samaritano, apela: “Grandes e pequenos, nobres e humildes, precisamos adotar a lição evangélica no que toca ao tuberculoso pobre da Bahia, não é possível que continue o que está acontecendo... a situação do tuberculoso em nosso meio é de um desolador abandono! É o tuberculoso indigente, o tuberculoso que não tem “leito, que não tem pão, que vive à tôa, sofrendo como pária, escorraçado, temido, sem saber ao certo onde acabar com a imensidade de seu martírio”. É uma “verdadeira tragédia de infortúnio, gerado pelo conluio sinistro da doença e da miséria!”. “Mais de três lustros de contacto com essa pobre gente, me aprimoram os sentimentos de piedade por tamanho infortúnio!” ... “Desgraçados irmãos nossos, que nasceram sob o esplendor do mesmo céu, porém para os quais a sorte ingrata reservou o travo das supremas amarguras”... E lançou campanha para construção do Hospital.
Os dados apresentados sensibilizaram sobremaneira o Governo do Estado e, pelo fato do Prof. Cesar de Araújo ter sido médico particular do Interventor do Estado da Bahia, Juracy Magalhães, em 27 de abril de 1937 tem início a construção do moderno Hospital Sanatório Santa Terezinha.
Em 16 de setembro de 1936, é fundada por Cesar de Araújo a Sociedade de Tisiologia da Bahia, ocasião em que compareceram clínicos e tisiologistas, tendo como Presidente da cerimônia, o Diretor da Faculdade de Medicina da Bahia, Prof. Edgard Santos e como secretários, os Professores Cesar de Araújo e Adriano Pondé.
Em maio de 1939, é realizado o 1 Congresso Nacional de Tuberculose no Rio de Janeiro, onde são discutidos os problemas graves da doença, oportunidade em que o Prof. Cesar de Araújo, Conselheiro de Honra, teve destacada atuação, apresentando o trabalho: “A Incidência de Tuberculose no Preto”.
Em 3 de janeiro de 1942, como Diretor Geral do Departamento de Saúde da Secretaria de Saúde e Assistência, o Prof. Cesar de Araújo na cerimônia inaugural do Hospital Sanatório Santa Terezinha e na presença do Interventor Federal da Bahia, Dr. Landulpho Alves, pronuncia discurso em que assinala: ... ”Diante desse monumento, símbolo de piedade e, sobretudo de justiça social, que, dentre em pouco, acolhedor e a altura de sua missão, abrirá as suas portas ao tuberculoso anônimo da Bahia” ...”Santa Terezinha!” ... órgão de saúde e de assistência, instrumento de prevenção e amparo, flor do progresso e da solidariedade da nossa terra.”... “A nossa maior doença é bem uma questão de excepcional gravidade, cuja constante endêmica só não apavora, porque já os familiarizou com o mal, no hábito de lidar com o perigo, que, de indivíduo a indivíduo, despovoa os lares, aniquila famílias inteiras, atinge a comunhão e desfibra a raça”.
Era a busca idealista de uma bem-aventurança: aquela conferida aos que pensam em realizer o milagre de Santa Teresinha – o sonho de um mundo transformado em rosas. E, afinal, o milagre aconteceu outra vez, naquela tarde de inauguração do Hospital. Quem o relata é o próprio Carlos Chiacchio, na delirante fantasia do poeta – Parabéns meu nobre e grande Cesar. Ao sair do seu novo baluarte do bem eu sentia a tarde desfolhar-se em rosas. Era, por certo, um punhado daquelas flores que a Santa de sua devoção lhe enviava do céu.
Professor César de Araújo assumiu a direção do Hospital Sanatório Santa Terezinha, logo após a sua inauguração. O Hospital idealizado pelo mestre Cesar era referência terciária, cuidadosamente instalado quanto à aprazível localização, com a sua arquitetura avarandada, respeitando as normas de higiene e ventilação, usando a aragem vinda do mar perpassada pela densa floresta soteropolitana. Situado em meio a um pomar de árvores fruitíeras, tinha horta e padaria que supriam as necessidades, tanto de pacientes como de funcionários, creche para as crianças filhos de tuberculosos e até mesmo um campo de futebol. Havia um periódico trimestral e subvenção para compra de livros e material escolar para os colaboradores em um ambiente que, embora marcado pela enfermidade, era de congraçamento e de felicidade para os que lá trabalhavam. O curso de Tisiologia e as sessões clínicas fometaram o desenvolvimento da cirurgia torácica naquela Instituição.
Em 17 de maio de 1945, após memorável cruzada que agitou e comoveu a alma da Bahia, foi inaugurado o Preventório Santa Terezinha - fruto de trabalho abnegado da Fundação Anti- Tuberculose Santa Terezinha, cuja finalidade era de caráter filantrópico e constituída de “senhoras admiráveis - almas de apóstolos e de patriotas, bondade e ação, a viverem um grande ideal de civismo e de religiosas da solidariedade humana - o ideal de uma vida melhor para os filhos dos tuberculosos ... o ideal de uma Bahia melhor sem crianças vítimas da sinistra doença!”. O Preventório tinha capacidade para abrigar 100 crianças de 4 a 10 anos, filhos de tuberculosos pobres e dispunha de instalações com toda a infra-estrutura para um atendimento modelar para os padrões da época. Na solenidade de inauguração, o Prof. Cesar de Araújo proferiu discurso, intitulado: “Em nome dessa infância que nem sabe sorrir”..., em que destaca “uma vitória de ter sido esforço da Fundação Santa Terezinha, em anos a fio, de um trabalho sem pausas. Realidade de uma notável obra de solidariedade humana. O Preventório Santa Terezinha, na pontualidade dos carinhos e nos ofícios da Ciência, destinados à redenção de tantas crianças que, sem eles, iriam ser feridas e aniquiladas pela tuberculose”...Assim o Preventório Santa Terezinha vem preencher uma grande lacuna no nosso armamentário anti- tuberculoso. Porque cresce, é cousa sabida, a incidência de tuberculose na Bahia na fase de franca epidemia que cursamos. E de formas graves”. E cita que Armand Dellile, na França, relata que crianças em contato com tuberculosos adoecem na proporção de 60%, e morrem na de 40%; afastadas do lar infectado, a morbidade é de 0,3% e a mortalidade de 0,01%. E conclui a sua oração, afirmando que “a Bahia agradece enternecida, em nome desta infância que padece aí além, nos ermos e magoados horizontes das desigualdades humanas. Em nome dessa infância que nem sabe sorrir como sorriem as crianças, porque da vida não sabe mais nada que a penúria de todo ano. Em nome dessa infância desamparada que tem a espreitar-lhe a vida em botão, nos lares contaminados, o germe da tuberculose, que a marcará inexoravelmente para o sofrimento, para o martírio e para a morte”.
Foi um periodo de lutas inglórias, fadigas e incompreensões, porém movido por indomável sentimento de solidariedade humana, obstinacão e amor à cruzada da gigantesca luta contra a tuberculose. Cesar de Araújo conseguiu com operosidade construtiva realizar os maiores empreendimentos da época, como o Preventório, o Dispensário Ramiro de Azevedo e o Hospital Santa Teresinha que, pelo seu porte, objetivo e inspiração, enobrece e imortaliza o seu criador.
Era o resultado da convêrgencia de fatores para a consecução de um propósito: os melhores meios, nas melhores mãos e com a vontade melhor.
Mas, ao lado do clinico e do sanitarista, que já se afirmavam, tinha Mestre Cesar que atender outro apelo de vocação de mútiplas formas – ensinar, ser professor de medicina. Embora Docente Livre e representante dos Docentes Livres na Congregação da Faculdade de Medicina, por várias vêzes, só com a vaga que se abre em 1946 pelo falecimento do Prof. Sabino Silva, Catedrático da Terceira Clínica Médica, o Prof. Cesar de Araújo é nomeado regente e o substitui em caráter interino.
Na regência interina da cátedra exercita seus pendores e inclinações, talvez os mais marcantes de sua vocação, ensinando – em aulas teóricas, no leito dos pacientes, rodeado de alunos, indagando, perquirindo, dialogando, discutindo, ouvindo antes de dar a última palavra, tudo feito com simplicidade, na sua forma natural de dizer e fazer as coisas. Nos anos da interinidade, sobretudo, nas proximidades do concurso para a conquista efetiva da Cátedra, estudava ininterrupta e exaustivamente, não só ele, mas os que lhe acompanhavam, compulsando, lendo revistas médicas, debatendo os assuntos complexos mais em voga, relacionando-se frequentemente, com os Serviços de Análises Clínicas e de Radiologia, cuja contribuição ao diagnóstico sabia relevante, sendo que os muitos anos de experiência com a Radiologia transformaram-no em verdadeiro mágico da interpretação de imagens radiológicas. Tudo o que se publicasse em revistas médicas que, por acaso, não estivessem ao seu alcance, era-lhe trazido ao conhecimento por colaboradores amigos. Sempre aberto a todos estiveram a sua casa, o seu gabinete e a sua vasta biblioteca, esta famosa pelo número e qualidade dos livros e periódicos, cantada, por muitos, pela desarrumação, em que ele não se perdia, todavia. Que ninguem tentasse arrumar o que para ele estava arrumado, naquele mundo tumultuado de livros, teses, revistas, artigos, cópias de artigos, não dispensando a companhia do seu cão fiel, enquanto estava no seu ambiente de trabalho.
Realizado o concurso em 1949, toma posse como titular, após brilhantíssima atuação, em prélio memorável, defendendo a tese Brônquios e Tuberculose. Longo noivado, de matrimônio tantas vezes transferido. Vagueando em andanças por outras áreas, percorrendo outros caminhos, tardou muito em voltar à sua Faculdade, que há tanto lhe aguardava.
Na cerimonia de posse da tão almejada titularidade manifestou-se em tom emocional no seu magnifico discurso: Enfim, aqui! Como prêmio maior e melhor de minha vida profissional!, confessando estar com a alma nova e o sol no coração.
O saudoso professor e magnifico reitor dessa Universidade, Luis Fernando Macedo Costa, expressou, de forma primorosa, a propósito da entrada do mestre Cesar na cátedra, quando disse: E afinal chegastes tardíamente talvez, mas como queríeis e como sonhastes, isto é, de cabeça erguida, sem falsas asas e com os próprios pés. E concluiu: chegastes na ante-velhice com o ardor da mocidade e o ideal da juventude.
Na cátedra, Cesar de Araújo, se caracterizou pela liderança como um verdadeiro mestre, tanto na área de ensino médico como na sua postura íntegra, correta e altiva, em todos sentidos do conhecimento humanístico e cultural. Deixou para os seus assistentes um exemplo de bondade e generosidade para com o próximo.
Passaram pela Terceira Cadeira de Clínica Médica várias gerações e lá se fizeram ilustres professores de outras disciplinas, sempre recebidos de braços abertos e sem restrições. Deu oportunidade a todos, fez escola e jamais impediu o progresso na carreira universitária a quem quer que que fosse. Foi considerado um “garimpeiro de talentos”, parafraseando o Professor Clementino Fraga, iluminando os seus discípulos para a opção individual de seus destinos, estimulando-os e criando as alternativas para o desenvolvimento profissional.
Liberal e austero, quando necessário, intransigente na sua conduta ética e nos deveres para com os pacientes; amigo e prestativo.
Por isso mesmo querido e respeitado por todos que com êle trabalhavam. A Terceira Cadeira de Clínica Médica era um abrigo para todos que procuravam o estudo e a boa convivência.
Foi na Terceira Cadeira de Clínica Médica que germinou o núcleo de desenvolvimento da Pneumologia na Bahia, com a ativa participação e irrestrito apoio do Prof. Cesar de Araújo e com a indicação de Almério Machado para assumir a função de Assistente da Cadeira, após retornar de curso de Especialização na Universidade de Pittsburgh, Pennsylvania. Incorporou-se a este grupo os recém-graduados Pedro Melo da Silva e Antônio Carlos Peçanha Martins. Reuniões frequentes e bem movimentadas ocorreram. Discussões clínico-radiológicas com a participação dos Drs. Fernando Costa DAlmeida, Lysalvaro Ferreira e José Aragão Araújo no Serviço de Radiologia do Hospital Prof. Edgard Santos eram semanais. Não raras vezes, os próprios radiologistas, profissionais bastante experientes, consultavam, para tirar as suas dúvidas, o Prof. Cesar.
Sôbre Almério, dileto discípulo, Cesar de Araújo referiu-se no seu pronunciamento intitulado Dia de Prêmios: Jovem mestre da medicina, já alentado no saber de experiência feito, grande aluno e, agora, também, meu mestre Almério, cuja vocação me orgulho de ter pressentido e animado.
Como professor Cesar de Araújo fez tudo. Ou quase tudo. Arguidor de teses. Chefe de Departamento. Vice-Diretor. Diretor em exercício. Nas bancas de concurso. No Conselho. Na Congregação.
Trabalhou muito, com dignidade e sem canseiras; com esforço e sem desânimos; com coragem e sem escusas; enfim, com amor.
Continuou estudando. Sempre. E mais. E tanto, que estudou, até o final como os alunos mais aplicados, aprendendo sempre para ensinar cada vez melhor.
Foi Cesar, além de grande Mestre da Clínica Médica e da Tisiologia, grande e ilustrado literato. Orador, humanista e cultor da arte de escrever. Elaborou bons e belos discursos, orações em que sobressaem elevados conceitos da melhor doutrina, revestidos de linguagem castiça e de fino lavor. Apaixonado das boas letras, perseverante e estudioso dos clássicos, tinha a fama e o prestigio de um dos homens mais cultos desta terra. Era seu nume tutelar Anatole France. Privou do convivio de Cícero, Platão e Horácio. Frequentou Tito Livio, amou Ovidio e conversou com Sócrates. Demonstrou intimidade com os preceitos gregos e romanos. Era enfim um humanista da melhor cepa.
Estas foram as credenciais que o fez ascender à Academia de Letras da Bahia em outubro de 1956, ocupando a Poltrona de número 26, protegida por três santos, ou quase santos – todos clérigos. D. Macedo Costa, Cupertino de Lacerda e Monsenhor Paiva Marques, os primeiros donatários. Francisco Peixoto de Magalhães Neto, que o saudara em 1936, quando da inauguração da Fundação Anti-tuberculose Santa Terezinha, volta vinte anos depois a lhe saudar recebendo-o como academico…”Se de justiça pude exaltar vossa preciosa qualidade como homem de ciência, com a mesma inteireza de julgamento, devo reconhecer e proclamar o incontestável valor do beletrista. Impenitente pecador que sucede a um santo, tendes, pelo menos com o vosso antecessor, uma afinidade: Sois, como ele, um orador de prol”.
O notável discurso que Cesar de Araújo proferiu na posse da Academia revelam bem o alto grau de sua extensíssima formação cultural, através das abundantes referências ali contidas aos textos bíblicos, aos clássicos da Grécia e da velha Roma, às obras fundamentais da literatura nacional e da estrangeira, ao pensamento filosófico de todas as épocas, aos assertos de teólogos e ensaístas. Ao concluir o seu pronunciamento promete solenemente aos seus pares da Academia: “Prometo-vos, apenas, mas de alma inteira na emoção incontida das derradeiras palavras, prometo-vos, sim, meus generosos confrades, com inquebrantável querer e de coração profundo que, enquanto aqui estiver, por Deus eu vos prometo: Não macularei este santuário”.
Uma das atividades que mais o desvaneceu e empolgou foi a de médico assistencialista, que exerceu por mais de quarenta anos com desvelo, curando com proficiência e com o mesmo cuidado desde os primeiros dias.
No exercício da medicina parecia sempre lembrar o conceito de Legendre… “a curiosidade das doenças fazia-o sábio, mas também o amor dos doentes fazia-o medico”. Foi capaz de associar, a ciência e a arte às doçuras do sentimento.
Levou ao doente, além da cura, a esperança, o espirito de sacrificio, o desprendimento e a bondade. Exerceu a medicina com o coração nas mãos, aquele coração brando do amigo verdadeiro. Tinha uma bondade atuante e profícua que dignifica a profissão, capaz de acender a luz do sonho no olhar mortiço. Ninguém poderia jamais distinguir Cesar de Araújo, o médico do amigo. Clínica e afeto, medicina e amizade, zelo profissional e transportes paternais se entrelaçam em harmonias admiráveis neste homem bom, pois nele Deus ajuntou um punhado de coisas boas que por outros homens estão repartidas.
Em 1967, aposenta-se por imposição da idade, como professor da Universidade Federal da Bahia, recebendo nesta ocasião várias homenagens, incluindo duas que lhe tocaram de perto, a da Terceira Clínica Médica e o banquete que conseguiu o maior número de adesões e aconteceu no Clube Português da Bahia. Foi uma apoteose, com gente de todas as classes sociais participando espontaneamente, ao que não faltaram os clientes, que eram muitos. Seu discurso foi uma obra prima, revestido de muito sentimento e forte emoção, e em certa altura ele dissera...”Vencendo a minha emoção, tendo por certo que esta festa das vossas presenças, nesta quadra da minha vida, ao cair das neves, prestigia menos o profissional humilde, que o principio superior de que o esforço tem seguro prêmio e que não é vão e inútil na vida o culto contínuo do ideal e do bem...Minha história é a história simples, de uma vida muito vivida entre trabalhos e deveres, nem sempre tranquila, de caminho fáceis”.
No ano seguinte, em 1968, recebe o título de Professor Emérito da Universidade Federal da Bahia por ter atingindo alto grau de projeção no exercício da atividade acadêmica.
Contudo, em nada as láureas lhe modificaram a essência requintada ou a aparência displicente; seria sempre o mesmo Mestre Cesar, a rezar as orações de Loudet, na crença de que aos Mestres “cumpre despertar nos discípulos o amor à verdade pela verdade mesma; o amor à justiça porque dignifica o homem; o amor ao estudo porque ilumina o espírito; o amor ao trabalho, porque fecunda a existência; e este despertar temos de cumprí-lo, não com fórmulas mortas ou gélidas teorias, senão com o exemplo de uma vida nobremente vivida”.
Cesar de Araújo morre aos 71 anos, precisamante no dia 04 de dezembro de 1969, quando ainda tinha muito para dar. Morreu jovem, simples e leal ao preceito de uma grande figura da Medicina francesa...”no belo oficio que é o nosso, se fica jovem enquanto guarda bastante curiosidade para maravilhar! Bastante humildade para aprender! Bastante gosto para não ser solene! Bastante pouco orgulho para estar satisfeito consigo mesmo! Bastante crítico para não crer o próprio saber inatingível, em suma quando ficamos estudantes!”
Assim foi Mestre Cesar, ensolarando a alma de tanta gente e a realizar, hoje que morto, a aspiraçãoo suprema de Raul de Leoni,
Pudesse eu ter a tua mesma história!
Mudos os cantos onde o Senhor louvo,
Deixar os versos que escrevi, sem glória,
Dentro do coração de minha Terra,
Entre o culto e a saudade de meu povo!
Cesar Augusto de Araújo ficou, no culto e na saudade de seu povo.
Ao findar, quero agradecer sensibilizado a todos os amigos, e a cada um, que aqui compareceram, por estes momentos de compreensão e de ternura que estão me proporcionando, fazendo-me entender mais do que nunca Plutarco quando nos ensina que nenhuma riqueza é de mais apreço que os amigos.
Aos meus pais, José Raimundo de Aragão Araújo e Solange Maria Araújo, aos meus filhos Cesar e Flávia, à minha esposa Adriana, o meu mais profundo agradecimento, a minha infinda gratidão, pelos exemplos dignificantes e ensinamentos edificantes, pelo apoio irrestrito, pelo desvelo e pela compreensão. A vocês, que tudo devo, ofereço-lhes o meu amor mais sublime, o meu amor eterno e o meu reconhecimento de serem os pilares que alicerçam a minha humilde vida.