Vou lhes contar um sonho que tive recentemente, pouco tempo depois tomar conhecimento que minha MÃE seria oficialmente reconhecida como cidadã do estado da Bahia. Terra que escolheu para viver e onde fincou raízes com profundas conexões.

No meu sonho é uma manhã de sol, agradabilíssima, provavelmente estamos no inverno soteropolitano. O sol esquenta, a brisa refresca, eu vejo uma grande área verde com um amplo gramado onde crescem e vicejam enormes mangueiras centenárias que desenham sombras sedutoras sobre a grama. Os pássaros cantam, os micos assobiam, as folhas farfalham...há vida.

Ao pé da maior mangueira, eu vejo 3 pessoas sentadas conversando tranquilamente. Estou distante e não consigo reconhecer quem são. Me aproximo um pouco mais, sem ser notado, e vejo que são dois homens brancos, magros, e uma mulher preta. Um dos homens deve ter cerca de 60 anos, usa óculos de aros redondos e ainda tem cabelos castanhos, penteados para trás. O outro é mais velho, tem uns oitenta, tem os cabelos prateados partido para o lado direito, a barba bem aparada e óculos retangulares de aros muito finos, quase imperceptíveis. A mulher usa uma longa saia de chita colorida que cobre suas pernas cruzadas e desenha um círculo quase perfeito cujo eixo é seu torço feminino, forte, ereto, altivo. Consigo ouvir algumas a palavras esparsas, o tom é alegre, cordial, conversa de amigos. Percebo ao longe o som de um carro se aproximando, lentamente. É uma Belina, de cor azul, talvez verde... Noto que está carregada, com o porta-malas abarrotado de coisas até o teto. A Belina estaciona e a motorista abre a porta, desce e caminha com um sorriso no rosto em direção ao grupo. É uma mulher alta, magra, com longos cabelos brancos, usa uma calça jeans e uma camiseta de malha. O grupo se levanta para recebê-la e cumprimentá-la, abraçá-la e beijá-la. Estão felizes. Eles voltam a se sentar. Ela senta-se ao lado do homem mais velho e repousa sua mão direita sobre o joelho esquerdo dele, que ato contínuo descansa a própria mão sobre a mão dela.

Eu acordo. Chorando. Chorando de felicidade e nos dias que se seguem, sendo filho de uma psiquiatra, psicanalista e ainda por cima psicodramatista me alegro dando sentido aos meus sentimentos e asas ao meu pensamento. Quem eram? Onde estavam? Sobre o que conversavam?

Eram Anisio Teixeira, Humberto Castro Lima, Maria Felipa de Oliveira.

Sentados à sombra de uma das lindas mangueiras do Campus do Cabula.

Reunidos para comemorar a BAIANIDADE de Maria Luisa Carvalho Soliani.

Ah como eu queria ter conseguido me aproximar mais e ouvir sua conversa, como eu queria ter podido me sentar com vocês e escutá-los. Mas Eos, a deusa da aurora não deixou. Tudo bem. Eu consigo imaginar....

Depois dos abraços e beijos, a primeira a falar é Felipa, Maria Felipa. Ela diz assim:

-Maria, minha irmã, que alegria foi vir aqui hoje. Saí cedo de Itaparica para lhe dar meu abraço e lhe garantir que a Bahia toda se alegra com essa homenagem, em especial as
Discurso de Humberto de Castro Lima Filho em homenagem ao título de cidadã Baiana de Maria Luisa Carvalho Soliani 25-8-2023
mulheres baianas. Pra ser baiana tem que ser ousada e corajosa. Ousadia e coragem para enfrentar as desigualdades e a injustiça social com as armas que estão ao nosso alcance. Eu tinha minha peixeira e o cansanção, mas sei que você é avessa a violência, e que suas armas são outras e talvez mais potentes, o afeto e o amor. Ah queria lhe dar uma coisa, me dê aqui a sua mão...cuidado que ela queima, mas na palma da mão não tem problema. Essa florzinha branca é a flor do cansanção. Quase ninguém sabe que o cansanção dá flor, mas veja como é bonita. Eu sei que seus olhos conseguem ver a beleza onde muita gente só vê problemas. Continue na luta, minha irmã, com ousadia e coragem.

-Oh, Felipa que sabedoria, que belas palavras, Malu merece cada uma delas - disse Anisio. Minha amiga, eu também queria lhe falar da minha felicidade - continuou ele. Tive que sair mais cedo ainda que Maria Felipa, afinal são mais de 600km de Caetité até aqui, mas de novo você merece. Que Campus lindo. Queria lhe agradecer, vi até que a epígrafe do projeto pedagógico de um dos cursos de vocês é uma citação minha. Essa é uma escola progressiva, mas a luta entre reacionários e renovadores não vai acabar tão cedo, aliás acho que ela nunca vai acabar... Você sabe, eu acredito que a finalidade da educação se confunde com a finalidade da vida. No fundo de todo este estudo paira a convicção de que a vida é boa e que pode ser tornada melhor. É essa filosofia que nos ensina o momento que vivemos. Educação é o processo de assegurar a continuidade do lado bom da vida e de enriquecê-lo, alargá-lo e ampliá-lo cada vez mais. Ah, eu também tenho uma coisa para você. É um texto meu que eu publiquei pela primeira vez em 1934 com o título de Educação Progressiva: uma introdução a filosofia da educação. Acho que passados quase 90 anos algumas coisas mudaram, mas ainda tem muito trabalho pela frente. Sempre haverá. Continuemos juntos.

-Tem muito trabalho mesmo, Anisio - disse meu pai, ainda segurando em sua mão a mão de minha mãe. Mais cedo, eu estava lá em Brotas lendo Nietzsche e sua fala me lembrou de um trecho... Deixe eu achar... o livro está aqui comigo. Deixe eu ver... Aqui. Nietzsche está criticando o ensino superior da Alemanha. Vejam só um texto de 1888. Aqui vai: “apresento de imediato as três tarefas para as quais se precisa de educadores. Deve-se aprender a ver, deve-se aprender a pensar, deve-se aprender a falar e a escrever, nos três casos a meta é uma cultura nobre. Aprender a ver – habituar o olho à calma, à paciência, a deixar que as coisas se aproximem; adiar o juízo, aprender a envolver e cercar o caso particular por todos os lados.” Ele continua “Aprender a pensar: não se tem mais noção disso em nossas escolas. Mesmo nas universidades, inclusive entre os verdadeiros eruditos da filosofia, a lógica começa se extinguir como teoria, como prática, como ofício. Leia-se livros alemães: nem sequer a mais remota lembrança de que para pensar se necessita de técnica, de um plano de ensino, de uma vontade de alcançar a maestria – de que pensar deve ser aprendido como se aprende a dançar, como uma espécie de dança... A dança em todas suas formas não pode ser descontada da educação nobre; o poder dançar com os pés, com os conceitos, com as palavras; ainda é necessário que eu diga que é preciso poder fazê-lo com a pena...” Felipa. Anisio. Maria Luisa sempre cuidou de mim, minha companheira. Discutimos muito, brigamos muito. Aprendemos tanto um com outro. Lutamos juntos,

Discurso de Humberto de Castro Lima Filho em homenagem ao título de cidadã Baiana de Maria Luisa Carvalho Soliani 25-8-2023 transformamos juntos a vida de muita gente. Juntamos nossos sonhos e nos transformamos a nós mesmos. Admiro tanto essa mulher. Obrigado Maria Luisa. Não lhe trouxe nada além do meu amor e a certeza de que sempre estaremos de mãos dadas.

Meus amigos, minhas amigas. É um privilégio, nascer na Bahia. Mas há baianos que nascem em outros lugares. Para essas pessoas só a terra da Bahia permite que suas raízes cresçam e se espalhem e assim se transformem em arvores bonitas e poderosas, com frutos férteis e transformadores.

Minha mãe é uma dessas pessoas. Aqui ela criou seus filhos, e vê seus netos e netas crescerem.

Aqui ela transformou a forma como se faz a educação dos profissionais de saúde. Aqui ela cuidou e continua a cuidar de tanta gente... Aqui ela continua a inspirar tantas pessoas.

Vamos continuar a sonhar juntos. Eu já encomendei ao filho de Hipnos o sonho dessa noite...

Vou voltar para o Campus do Cabula naquela manhã ensolarada do inverno soteropolitano. Mas agora Priscila está de mãos dadas comigo. Vou me encontrar com minha mãe e meu pai. Com Anisio e Felipa. Ah tem umas crianças correndo em nossa direção... É Valentina, Luana, Catarina, Humberto, Analu e Bernardo. Lá vem André, Mariana e Silvio... Olha dona Leda, Margot e Mônica, Lucas, Noelia, Jamile, Seu Júlio...

Êta, tá todo mundo aqui, vocês estão todos aqui, Lourdinha, Carol, Atson, Marta, Verônica, Geraldo, Clarckson, Rosi, Cecília, Sylvia, as Lucianas, as Luizas, quantos professores, quantos estudantes que festa...De repente aquela enorme mangueira começa a se mexer e arranca suas raízes da terra. Todos riem, se abraçam e se beijam. É uma festa e ao fundo se houve o som do bom reggae baiano...

Ando sobre a terra
E vivo sob o sol,
E as, e as minhas raízes,
Eu balanço, eu balanço, eu balanço...
Vem me regar mãe, vem me regar...
Obrigado Dra Maria Luisa, Obrigado Malu, Obrigado Minha Mãe.